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O parecer do fisco paulistano sobre ISS de softwares

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08 de setembro de 2017

Segurança jurídica visada não foi alcançada.

Recentemente, no Parecer Normativo SF Nº 1 de 18/07/2017, a Fazenda do Município de São Paulo exarou seu entendimento acerca da incidência do ISS sobre “serviços de licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação, por meio de suporte físico ou por transferência eletrônica de dados, ou quando instalados em servidor externo (Software as a Service – Saas)”.

O Parecer Normativo se proclama como um ato uniformizador do entendimento sobre o enquadramento tributário do SaaS, e que visa a segurança jurídica dos contribuintes. Contudo, o que ele faz é justamente atentar contra esse valioso princípio jurídico.

A própria determinação de submissão desses fatos ao ISS é controversa, pois pode ensejar conflito com o entendimento já externado pelos Estados (como no Convênio ICMS nº 181/2015) e pelo STF em relação ao ICMS (ADI-MC 1945). E nenhum cenário pode ser mais inseguro para os contribuintes do que o exercício conflitante de competência tributária sobre um mesmo fato gerador.

Além disso, o Parecer Normativo agride de forma direta a irretroatividade, que é regra inequivocamente concretizadora da segurança jurídica. E isso se dá pelo fato de que esse Parecer se intitula “interpretativo” e revoga “Soluções de Consulta emitidas antes da publicação deste ato e com ele em desacordo, independentemente de comunicação aos consulentes”.

Isso desperta duas questões: primeiramente, pode um ato infralegal, atribuindo-se o caráter “interpretativo”, atrair a eficácia retroativa prevista pelo Código Tributário Nacional (CTN) no artigo 106, inciso II, alínea ‘a’?

Além disso, pode um ato infralegal de caráter geral e abstrato revogar consultas respondidas ao contribuinte em sentido contrário (ato individual e concreto) independentemente da notificação também individual do contribuinte, na medida em que o CTN (artigo 146) demanda a “introdução” da modificação do critério jurídico para que ele possa ser aplicado a fatos geradores futuros?

A nosso ver, a resposta é negativa para ambas as perguntas.

A legislação tributária compreende os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas (artigo 96 e artigo 100, inciso I do CTN), categoria do mencionado parecer normativo, e o CTN (artigo 105) é expresso em estabelecer que a legislação tributária somente se aplica a fatos geradores futuros. A retroatividade é propriedade admitida especificamente para a lei e apenas nos casos expressamente previstos no artigo 106 do CTN, que autoriza a “lei expressamente interpretativa”. Se a possibilidade de termos uma “lei interpretativa” já é altamente controversa (basta lembrar a celeuma em torno da Lei Complementar 118/2005, apreciada pelo Supremo Tribunal Federal-STF no Recurso Extraordinário 566.621), fato é que inexiste espaço no CTN para que um ato normativo infralegal tenha essa característica e efeitos retroativos.

Já para a segunda questão, o contribuinte que realiza consulta se coloca em uma situação individual e concreta distinta dos demais, que optaram por não receber, a pedido, um ato individual e concreto da Fazenda Pública que, em resposta à consulta formulada, fixe o critério jurídico. Logo, cabe à Fazenda Pública, ao exarar um ato normativo relativo a determinada matéria (como é o referido Parecer Normativo), realizar o controle interno de compatibilidade do seu novo pronunciamento com os pronunciamentos anteriores. Verificando a incompatibilidade entre ambos, cabe a ela introduzir pela mesma via junto aos sujeitos passivos consulentes o novo critério, ou seja, mediante ato individual e concreto a eles regularmente notificado, tal como é a resposta à consulta.

Outra determinação que afronta, ao invés de promover, a segurança jurídica, é a do parágrafo único do artigo 1º do Parecer Normativo, segundo a qual “o enquadramento a que se refere o ‘caput’, no tocante ao SaaS, não prejudica o enquadramento de parte da sua contratação nos subitens 1.03 e 1.07 da lista de serviços do ‘caput’ do artigo 1º da Lei nº 13.701, de 2003”.

Isso se traduz em verdadeiro suspense fiscal, pois o contribuinte fica sem saber como seu contrato será enxergado pelo Fisco. O dispositivo dá uma autorização ampla, verdadeiro cheque em branco, para que a fiscalização “fatie” o contrato de licenciamento ou cessão de uso de software em três “serviços” distintos: o próprio licenciamento/cessão (1.05), processamento/armazenamento de dados (1.03) e suporte técnico em informática (item 1.07). Com isso, estaria a Fazenda Pública autorizada a aplicar alíquotas distintas para cada “fatia” do contrato, na medida em que o item 1.05 é tributado no Município de São Paulo com a alíquota de 2%, mas os demais sofrem a incidência de 5% e 3% respectivamente.

Ocorre que essas atividades de processamento e suporte podem ser executadas pelo contratado sem que isso represente fato gerador autônomo do ISS. Deixando de lado o armazenamento de dados para darmos um exemplo, é comum que na execução do contrato de SaaS o contratado ofereça suporte técnico para viabilizar o adequado acesso ao software configurando os dispositivos e a rede dos clientes, bem como mesmo treinando seus integrantes para acessar e usar o software. Também não é raro que o contratado realize um “processamento” dos dados dos clientes, extraindo informações necessárias para aperfeiçoar a experiência do usuário na utilização do software.

Essas atividades não configuram fato gerador do ISS porque é muito claro que, exercidas nesses termos e sem que sejam objeto de preço em separado, não constituem o objeto do negócio jurídico pelo qual é remunerado o contratado, representando a capacidade econômica revelada pelo evento.

São nitidamente atividades-meio, desempenhadas pelo contratado para viabilizar ao contratante os benefícios e a utilidade do objeto contratado, qual seja, o acesso e uso do software. Logo, são etapas para que o fim do contrato (uso do software) seja alcançado, intributáveis pelo ISS.[1]

Visível também que tais atividades se dão em benefício do próprio contratado, pois é por meio delas que o seu cliente poderá utilizar o software pelo qual o contratado é remunerado. Sem elas o cliente não teria a experiência almejada, e é dessa experiência que o contratado retira sua remuneração, sendo ele o beneficiário da atividade meio de processamento e suporte.

O Parecer Normativo nº 1, para alcançar seu pronunciado objetivo de promover a segurança jurídica dos contribuintes, deveria ter caminhado em sentido diverso. Não poderia ter autorizado o fatiamento do contrato de forma genérica, mas sim estabelecido critérios pertinentes ao fato gerador e à base de cálculo do ISS para identificar se, dentro de um mesmo contrato, existem diversas “prestações” de serviços em benefício do contratante dotadas de preço autônomo apto a sofrer a incidência do imposto.

A alternativa adotada projeta os contribuintes em uma zona de incerteza incompatível com a segurança jurídica, pois o Parecer não fixou critérios para a identificação dos possíveis e eventuais fatos geradores existentes no âmbito de um mesmo contrato, optando por autorizar a desconstrução do contrato sem critérios claros e precisos.

[1] AIRES BARRETO ensina que apenas a prestação que diretamente implemente o fim do negócio jurídico pode ser tributada, e “não as suas etapas, passos ou tarefas intermediárias, necessárias a obtenção do fim” (ISS – atividade-meio e serviço-fim, Revista Dialética de Direito Tributário n.5, p.82)

 

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