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ConJur publica artigo de Misabel Derzi: Prefácio: A receita de um bom juiz
12 de abril de 2021
A revista eletrônica Consultor Jurídico publicou artigo da professora Misabel Derzi, sobre os direitos fundamentais dos contribuintes. O artigo intitulado “Prefácio: A receita de um bom juiz”, confira:
Prefácio: A receita de um bom juiz
Misabel Abreu Machado Derzi
Eureka! (achei!), a expressão supostamente utilizada por Archimedes, na Grécia de mais de dois séculos antes de Cristo, para exclamar a solução de um problema complexo, encontra seu equivalente no conto beduíno muito antigo dos 11 camelos [1].
Trata-se de conhecida história, narrada por muitos, trabalhada por Niklas Luhmann [2] e recentemente interpretada, em doze versões diferentes, pelo filósofo belga, François Ost [3].
Não nos interessa aqui a solução do problema à luz da matemática. Relativamente aos 11 camelos, verifica-se que o testamento deixa uma parte não distribuída, ou seja, a soma das partes de cada filho, 5,5 + 2,75 + 1,83 corresponde a 10,08 camelos. Portanto a astúcia do juiz residia no fato de que, desde o início, ao emprestar o 12º camelo, sabia que um deles sobraria. O empréstimo do camelo apenas reconstitui a unidade, que não lesa a nenhum dos filhos. Cada um deles receberá exatamente o que determinou a regra, sendo que o resultado fica arredondado para cima em relação aos três herdeiros. E, como observa Ost, os amantes da aritmética pura não apreciam muito essa história, porque não são divididos 10,08 camelos, mas onze. “Uma história de juiz, em suma, muito mais do que de matemática; uma parábola de justiça muito mais do que um exercício de rigor formal. Sem dúvida não é por acaso que o conto é transmitido nas Escolas de Direito em vez de sê-lo nas academias de matemáticos” [4].
Coisa de bom juiz, que cria ou constrói o Direito, sacando o sentido mais adequado à luz do caso, ou um sentido novo antes não aventado, na cadeia infinita de signos e significações ou selecionando o melhor sentido entre aqueles possíveis [5]. Tudo isso não para derrotar a regra mas para realizá-la.
O notável em tais representações pode ser ainda identificado na teoria dos princípios sistêmicos, implícitos (tão comuns na doutrina tributária clássica nacional de Aliomar Baleeiro e Geraldo Ataliba) ou na interpretação jurídica segundo a totalidade do sistema em A.A.Becker, princípios que não aparecem mas são deduzidos pela racionalidade estruturante que dá sentido às normas e regras diversificadas. Somente depois de construídas pelo bom juiz, tais normas implícitas que sempre estiveram lá, vêm à luz e imantam de significado o conjunto normativo do sistema. Pois, como se diz, muitas vezes nós só vemos o que sabemos
Coube a Ronald Dworkin, entre os contemporâneos, fazer a melhor descrição do fenômeno por meio da integridade, pedagogicamente explicada pelo planeta Netuno. Avançou mais, contrapondo-se à singela concepção de um “sistema de regras”, que negligenciasse a totalidade, baseado em normas jurídicas que correspondessem a um fato social específico, não relacionado com os demais fatos criadores de norma e não dependente de validade de outras normas. Enfim Dworkin realiza uma defesa do ideal da integridade, a partir de uma bela metáfora em comparação com o planeta Netuno.
Anos antes de Netuno ser visualizado por meio de telescópios e fotografias espaciais, a ciência já sabia de sua existência e a postulava, apenas por inferências lógicas. Como poderia a ciência postular um fato empírico, se ela não conseguia constatar esse fato por meio da observação? A resposta dada por Dworkin, em sua obra seminal “O Império do Direito”, é de que Netuno precisa ser postulado porque sem ele as leis da física não seriam válidas. Não seria possível explicar, por exemplo, a movimentação dos demais planetas que integram o sistema solar.
Da mesma maneira, para que possamos reivindicar qualquer pretensão de justiça precisamos postular o valor da integridade, que nada mais é do que uma expressão institucionalizada da ideia de “igual respeito e consideração”, é dizer, da ideia de que todos os cidadãos têm o direito de serem tratados como iguais. Não somente em posição moral pessoal e micropolítica, mas de todos em relação inter-recíproca totalizante.
A integridade seria, pois, o nosso Netuno [6]. Ela é uma parte constitutiva do Direito, pois, é a que nele está implícita, pressuposta em vez de meramente posta, como ensina, entre nós, Eros Grau [7]. Sem uma noção como integridade, consistência, igualdade na lei (em vez da mera igualdade perante a lei), não faz sentido qualquer pretensão de justiça [8].
Pois bem, em considerações abstratas não seria tão difícil preconizar uma boa solução judicial que, nos casos difíceis, correspondesse ao melhor encontro do direito, àquele que solucionaria realmente conflitos e pacificaria, respondendo ao programa do sistema, como programa de solução de conflitos. A solução, sem dúvida, está lá, pressuposta, às vezes invisível aos olhos de muitos. Nos casos concretos da vida, e aí está a grande e difícil tarefa, o bom juiz desnuda e traz à superfície a melhor solução, por integridade no dizer de Dworkin, explicitando a implicitude do princípio como diria Geraldo Ataliba, ou sacando o 12º camelo no modelo beduíno. Tal mister é admirável porque, por meio da racionalidade argumentativa, lembrada na língua franca das cortes em Postema [9], não se quebra a regra, não se viola o direito, mas se concretiza o direito vivo, na melhor escolha possível.
Esta obra, escrita em homenagem ao ministro Gilmar Ferreira Mendes, da Corte Suprema, é coordenada e editada pelo jurista e consultor da União, Dr. Oswaldo Othon Saraiva Filho, juntando-se a muitas outras escritas em louvor ao ministro. O que denunciam tais homenagens? A admiração é endereçada ao bom juiz, ao magistrado da mais alta corte do País, ou ao professor, jurista e acadêmico e ainda autor de livros de alta envergadura [10]?
Sim, a todos esses ricos aspectos profissionais. No entanto, porei de lado a admiração por sua notável carreira acadêmica, preferindo centrar o olhar na carreira de magistrado dentro da Corte Suprema brasileira, oportunidade em que o ministro capitaneia, guia ou participa da construção viva da Constituição da República, ao lado de seus pares.
Vida tão produtiva para si, para os seus e para nós, cidadãos e jurisdicionados, é ímpar.
Não obstante, como já registro no artigo que escrevi aqui neste livro [11], em homenagem a Gilmar Mendes, destacar-lhe as obras publicadas ou as decisões judiciais mais relevantes, seria opção meritória, porém incompleta. Ela não realçaria os caminhos, a metodologia, o procedimento que, em razão da atuação pioneira do ministro, abriram-se na Corte Suprema, da mais alta relevância, pois dão lugar a um complexo de decisões mais consistentes, inerentes ao Estado de Direito, que, de outra forma, não teriam vazão. O ministro interferiu e trabalhou as regras lógicas da física jurídica, na racionalidade do Direito, por integridade, e com isso fez aflorar muitos Netunos.
Repito aqui a expressão de Heidegger, “Caminhos, não obras”, (Wege nicht Werke), inteiramente adequada para nomear os caminhos abertos por Gilmar Mendes em sua consagrada atuação na Corte Suprema. Tais procedimentos (mais do que uma decisão concreta ou outra mesmo de excelência excepcional, entre muitas específicas de um caso ou outro, que estou aqui equiparando a obras) são caminhos sempre plenos de decisões que se sucedem, dentro do bom percurso, por ele inaugurado, a ser trilhado. Outras decisões virão, de igual excelência, enquanto o mesmo caminho for percorrido.
Compartilhamos com o notável jurista, a posição que defendeu em livros e junto à Corte Suprema, abrindo-lhe novos caminhos.
De longa data, preocupado com a efetividade dos direitos e garantias fundamentais, Gilmar Ferreira Mendes [12] destacou a “conveniência e a oportunidade de as cortes constitucionais estipularem os efeitos de suas decisões declaratórias de inconstitucionalidade”, se ex tunc, se ex nunc, ou ainda se não acompanhadas de nulidade imediata.
Utilizando e adaptando a nossa Constituição recursos, manuseados pela Corte Constitucional alemã, com especial aplicação no caso de leis concessivas de benefícios discriminatórios, Gilmar Mendes ponderou, há quase trinta anos, que “a declaração de nulidade de todo o complexo normativo revelaria, como assentado por Ipsen, uma esquisita compreensão do princípio de justiça, que daria ao postulante pedra ao invés de pão (Stein statt Brot)” [13].
Ora, o que a Constituição de 1988 deseja é a efetividade dos direitos e garantias fundamentais do contribuinte, para isso prevendo remédios, ações e instrumentos aptos a sua concreção. Diante de ofensa intolerável à igualdade, em norma concessiva de benefícios excludentes de outros em situação similar, a supressão pura e simples da isenção significa, sem dúvida, a outorga da pedra em vez do pão pleiteado pelo contribuinte lesado. Não é razoável “fingir” que é constitucional a norma discriminatória para não se ter de enfrentar o problema, ou reconhecer a inconstitucionalidade, mas, declarar-se o tribunal “impotente”, como legislador negativo, ou cassar a isenção ou outro benefício, interferindo em plano de governo.
Ao introduzir tantas novas técnicas de controle de constitucionalidade, o ministro Gilmar Mendes garantiu que o Direito cumprisse sua função básica de atender às expectativas normativas criadas, à confiança gerada pelo Estado, não apenas pelo Estado-legislativo, mas ainda pelo Estado-executivo e, sobretudo, pelo Estado-juiz nas relações tributárias, abrindo sendas seguras ao desenvolvimento e ao investimento.
Em face das mudanças e reviravoltas jurisprudenciais, que rompem entendimento antes consolidado, quebrando-se a confiança gerada pelo Estado-juiz, os caminhos de Gilmar Mendes por meio da flexibilização do controle de constitucionalidade em suas mais variadas formas, fortalecem a segurança, a proteção da confiança e a boa-fé de todos aqueles que pautaram o seu comportamento segundo a obediência às regras judiciais estabilizadas. A responsabilidade pela confiança gerada pelas decisões judiciais é fenômeno de alta relevância, inerente ao Estado de Direito e à própria credibilidade do Poder Judiciário.
O pioneirismo de Gilmar Mendes não pode ser esquecido. Hoje, a questão foi pacificada com o advento de dois diplomas legais, a Lei nº. 9.868/99, artigo 27, e o novo CPC, em seu artigo 927, §3º [14]. Sendo assim, somente sustentando a inconstitucionalidade de tais diplomas legais ou de parte deles, poder-se-ia agora recuar na tarefa de atribuir responsabilidade ao Estado-juiz, pela confiança gerada por seus atos. Esse o Netuno, por tanto tempo oculto, que hoje pode ser visualizado em fotos espaciais e telescópios pela grande maioria de juízes, advogados e juristas. Mas ele tinha sido deduzido por Gilmar Mendes muito tempo antes por meio do raciocínio lógico do Direito, espécie de lei implícita da física jurídica, ou integridade do sistema. Sem isso, como afirmar o Estado de Direito, a segurança, a proteção da confiança e garantir a boa fé do contribuinte que, guiando-se pelas regras judiciais antes consolidadas, se vê agora traído por novo entendimento contraposto, de efeitos retroativos? A regra antes implícita que veio à luz, por meio da racionalidade do Direito, configura a responsabilidade pela confiança gerada pelo ato normativo/judicial [15].
O Poder Judiciário ficou implicado. As consequências que as regras judiciais desencadeiam foram assumidas. Antes irresponsável do ponto de vista institucional, agora o Poder Judiciário tem de olhar para si e proteger aquele que, de boa-fé, orientou a sua conduta pela regra anterior, que foi superada. Se o homem não pode modificar o passado, apenas um deus o poderia, a Constituição, que é obra humana, proclama a irretroatividade da regra e assegura que o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito possam invadir o futuro, quer do legislador, quer do juiz, quer do administrador. Tudo isso decorre da natureza humana, é lógica inerente à racionalidade jurídica. No entanto, isso que está pressuposto na ordem jurídica, e que não era visto pela maioria, somente foi exposto pela arte de Gilmar Mendes. O bom juiz.
Essas as razões pelas quais não desfilei aqui nenhuma decisão concreta. Pois os caminhos que o ministro Gilmar Mendes abriu na Corte Suprema levam ao fortalecimento dos direitos e garantias fundamentais, decorrem da independência com que conduz o seu labor em face dos outros ramos de governo, à coragem de seus julgados, à defesa do Estado de Direito e ao primado da Constituição.
A receita de um bom juiz. É toda essa mistura que encontramos em Gilmar Mendes: racionalidade argumentativa, sensibilidade humana e social, independência e coragem. Integridade. Talvez tudo decorra da sua natureza, das reais inclinações de seu espírito. Mas não só isso, pois isso não é o bastante
Se os leitores deste livro perguntarem a mim, seriamente: qual a receita de um bom juiz?
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[1] Diz a lenda beduína que um pai, sentindo a morte se aproximar, formulou seu testamento para regrar a sucessão. Deixou todos os seus bens a três filhos. Ao mais velho, em virtude do direito da primogenitura, lei do morgado, atribuiu-lhe a metade dos bens. Ao segundo filho, um quarto do acervo e, finalmente ao caçula, um sexto dos bens. Com a morte do pai, os filhos se viram em um impasse para executar o testamento, pois o pai havia deixado uma tropa de 11 camelos. E a divisão não resultava em números inteiros. Feita a divisão, a quota do primeiro filho seria de 5,5; a do segundo de 2,75 e a do terceiro, de 1,833. Haveria necessidade de sacrificar um camelo ou mais para dividi-los, mas com isso todos perderiam porque, no deserto, o camelo tem alto valor estando vivo, como meio de transporte. Como proceder?
Levado o caso a um juiz, o Khadi, depois de muito e bem pensar, e de desenhar alguns sinais na areia, tomou um camelo de sua propriedade, com isso completando 12 camelos e o entregou aos herdeiros, com a promessa, de mais tarde, tão logo pudessem, devolvessem-no. Os herdeiros assim o fizeram e pouco tempo depois devolveram imediatamente ao juiz, o 12º camelo.
O misterioso, o mítico, que eterniza o conto, é que cada um dos filhos recebeu exatamente a sua parte, exatamente o que determinava a vontade do testador. A regra foi fielmente cumprida e, ao final, sobrou um camelo, o que foi devolvido. Vejamos:
Ao primeiro filho, metade de 12 = 6; ao segundo, um quarto de 12 = 3; e ao terceiro, um sexto de 12 = 2. A soma de 6 + 3 + 2 corresponde a 11, o que demonstra que o 12º camelo deveria voltar ao juiz. Qual era a justiça desse juiz?
[2] Cf. “La Restitution du douzième chameau…” in Zeitschrift fur Rechtssoziologie, pub. póstuma, 2000.
[3] Cf. OST, François. Dire le Droit, Faire Justice. E. Bruylant, Bruxelles, 2007.
[4] Cf. OST, François. Dire le Droit…p. 181.
[5] Cf. DERZI. Misabel. Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo, Noeses, 2009.
[6] Ver, em especial, Dworkin, Ronald, Law’s Empire. Cambridge, MA: Belknap, 1986, cap. 6.
[7] Ver. Eros Roberto Grau, O Direito posto e o direito pressuposto. Malheiros, 8ª. Ed, 2011.
[8] Cf. Bustamante, Thomas. A Integridade e os fundamentos da Comunidade Política. IN Interpretando o Império do Direito. Organ. André Coelho e outros. Arraes Editores. 2018.
[9] Cf. Gerald J. Postema. Law’s Rule. Reflexivity, Mutual Accountability, and the Rule of Law. In Bentham’s Theory of Law and Public Opinion. Coord. Xrabv Zhai, p 32.
[10] Louvar as obras do ministro Gilmar Mendes no universo acadêmico não é difícil. O árduo é escolher, dentre tantas, as mais relevantes, enfocando-lhe a vida acadêmica e de pesquisas notáveis como Mestre e Doutor pela Universidade de Münster/Alemanha, quando obteve o reconhecimento dessa renomada instituição de ensino com o predicado máximo magna cum laudae pela defesa da tese “O Controle Abstrato de Normas perante a Corte Constitucional Alemã e perante o Supremo Tribunal Federal”; perseguindo a sua carreira docente como professor dos cursos de graduação e de pós-graduação da UNB, ou seu percurso de grande conferencista no Brasil e no exterior que nos remete às centenas de publicações relevantes de textos, livros e artigos.
[11] Artigo em coautoria com Valter Lobato, “Os Caminhos Abertos pelo ministro Gilmar Mendes.”
[12] Cf. Die Abstrake Nomenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgericht und vor dem Brasilianischen Supremo Tribunal Federal, Berlim, 1991, Ed. Duncher & Humblot
[13] Cf. “Necessidade de Desenvolvimento de Novas Técnicas de Decisão: Possibilidade da Declaração de Inconstitucionalidade sem a Pronúncia de Nulidade no Direito Brasileiro”, texto de conferência — Congresso Luso-Brasileiro de Direito Constitucional, Belo Horizonte, 04.12.1992, p. 22.
[14] Não se ignora o papel proeminente do ministro Luiz Fux na fundamentação e elaboração para aprovação do novo CPC/2015, forte em segurança e proteção da confiança em especial nas mutações jurisprudenciais.
[15] Também há décadas, nas atualizações que fizemos da clássica obra de Aliomar Baleeiro, já defendíamos a proibição constitucional da retroatividade do Direito — e não somente das leis — sustentando que a irretroatividade, como direito fundamental, obrigaria os três poderes e não somente o legislador. Posteriormente, fizemos desse tema a tese de titularidade, publicando a obra Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário (Noeses, 9007). DERZI, Misabel A. Machado. Atualizações à obra de ALIOMAR BALEEIRO. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7ª.ed. Rio de Janeiro, Forense, 1997.