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Selic acrescida a depósitos e indébitos tributários não deve ser tributada
Por Editor Sacha Calmon
23 de novembro de 2020
Por André Mendes Moreira e Pedro Henrique Neves Antunes
1) Acréscimos moratórios sobre depósito de tributos e indébito tributário recuperado
O depósito de tributos e a repetição do indébito tributário são realidades recorrentes na vida dos contribuintes brasileiros. Aspecto comum a ambos é a incidência da taxa Selic: 1) ao longo
do período em que o montante restou depositado até ser levantado pelo contribuinte [1]; bem como 2) sobre o indébito tributário recuperado, desde o pagamento indevido [2].
Quanto a isso, questiona-se: tais acréscimos moratórios sobre depósitos levantados pelo contribuinte ou sobre o indébito a ele restituído, calculados pela taxa Selic, representariam receita ou mesmo renda passível de atrair a incidência de IRPF, CSLL, PIS e Cofins?
Para a Fazenda Nacional, sim. Seja pelas contribuições a PIS e Cofins, quanto pelo IRPJ e CSLL (Solução de Consulta nº 166-Cosit, de 09.03.2017; Solução de Divergência COSIT nº 19, de 12/11/2003 e Solução de Consulta nº 10 — SRRF06/Disit, de 29/1/2013).
Entretanto, entendemos que o hodierno posicionamento fazendário não é o que melhor se amolda ao ordenamento jurídico, devendo ser revisto — se não pela própria Receita Federal, ao menos pelo Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o tema 962 de repercussão geral, no bojo do recurso extraordinário nº RE 855.091/RS. Vejamos.
2) A natureza híbrida da taxa Selic: juros e correção monetária
Nesse ponto, esclarece-se ser a taxa Selic o índice adotado pela União Federal (e, por decorrência, por vários outros entes federados) para apuração dos acréscimos moratórios sobre depósitos e indébitos tributários restituídos.
Ocorre que, consoante sólida jurisprudência, a taxa Selic não representa somente a incidência de juros, trazendo também em seu bojo um percentual que corresponderia única e exclusivamente à correção monetária. Basta ver que, sobre o montante histórico depositado ou restituído, somente deverá incidir a taxa Selic. Ou seja, não incidirá: 1) a taxa Selic a título de juros; cumulada com 2) outro índice a título de correção.
A primeira razão para tanto — e, nesse ponto, especificamente em âmbito federal — é a inexistência de previsão legal, afinal, a legislação prevê somente a incidência da taxa Selic, nada dispondo quanto a eventuais acréscimos moratórios.
Ocorre, porém, que, ainda que o Poder Legislativo pretendesse, hipoteticamente, instituir índices de correção monetária cumulativos à taxa Selic, tal pretensão tem sido invariavelmente reprimida pelo Poder Judiciário, como se extrai de inúmeros precedentes.
Nesse sentido, é entendimento da 1ª Seção do STJ que “a incidência de juros moratórios com base na variação da taxa SELIC não pode ser cumulada com a aplicação de outros índices de atualização monetária, cumulação que representaria bis in idem (…)” [3].
Isso porque “a referida taxa (SELIC) engloba juros e correção monetária, não podendo ser cumulada com qualquer outro índice de atualização” [4]. Não por outra razão, prevê a Súmula 523/STJ (específica para a restituição de indébitos, frise-se) que está “vedada sua cumulação com quaisquer outros índices” [5].
A conclusão que se extrai de todos os supracitados precedentes é que, na composição da taxa Selic — e sobretudo a que incide em valores tributários restituídos/levantados —, já está incluída tanto juros quanto correção monetária.
Nesse ponto, pois, chega-se ao seguinte questionamento: seria legítima a tributação, por IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, da mera correção monetária?
Para responder tal questionamento, há de se levar em conta que “juros quer exprimir propriamente os interesses ou lucros, que a pessoa tira da inversão de seus capitais ou dinheiros, ou que recebe do devedor, como paga ou compensação, pela demora no pagamento do que lhe é devido” [6]. E, ainda que se possa atribuir diferentes qualificações jurídicas aos juros (como moratórios; compensatórios; remuneratórios; convencionais; legais; reais; rotativos; sobre capital próprio etc.), em cada uma dessas figuras permanece aquele núcleo de remuneração do capital/dinheiro.
Correção monetária, por sua vez, é instituto distinto, que se destina à recomposição da moeda frente à sua desvalorização no tempo, sobretudo pela inflação. Logo, “a correção monetária (…) não remunera o capital, apenas assegura sua identidade no tempo” [7], como há muito alertava o ministro Cordeiro Guerra, do Supremo Tribunal Federal.
Mais recentemente, explicação precisa da diferença entre juros e correção monetária foi fornecida pela Corte Especial do STJ, no julgamento do REsp nº 1.131.360/RJ. Do voto-vista vencedor, proferido pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, depreende-se que:
“(…) a correção monetária é mecanismo de recomposição do poder de compra da moeda, e não de remuneração de capital, razão pela qual deve sempre representar as alternâncias reais da economia e jamais se prestar à manipulação de instituições financeiras, que, evidentemente, lucram com as importâncias depositadas em seus cofres.
(…)
Não se confunde, portanto, com os juros, que visam à remuneração do capital. A atualização monetária cuida apenas de preservar o equilíbrio entre os partícipes das relações econômicas, neutralizando os efeitos da inflação.” (STJ, REsp 1131360/RJ, rel. min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, rel. p/ Acórdão min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, CORTE ESPECIAL, jul. 03.05.2017, DJe 30.06.2017).
Conclui, por fim, a ministra: “Desse modo, no caso de depósito judicial, a correção monetária do valor depositado não acresce o patrimônio do depositante tampouco causa prejuízo ao depositário”.
Logo, em decorrência direta das premissas ora fixadas, parece ser impossível se admitir a tributação da mera correção monetária sobre depósitos e indébitos restituídos, por não representar qualquer receita ou renda.
3) O tratamento tributário da taxa Selic sobre depósitos e indébitos tributários restituídos ao contribuinte
Pelo exposto, entende-se que, para a correta tributação da Selic, esta deveria ser decomposta em (“correção monetária” + “juros”), de forma a tornar possível a tributação somente do montante correspondente aos juros (premissa que, nesse texto, não se discute). O que não parece correto é justamente convalidar a tributação de toda a taxa Selic.
Para que se evite a tributação, portanto, da mera correção monetária, duas alternativas se apresentam, a saber: 1) ou se deixa de tributar a integralidade dos acréscimos apurados com base na taxa Selic; ou 2) permite-se ao menos que, do valor total dos acréscimos apurados com base na taxa Selic, seja deduzida a correção monetária do período.
A primeira opção restou adotada pela Corte Especial do TRF-4 ao apreciar a arguição de inconstitucionalidade nº 5025380-97.2014.4.04.0000, tendo se chegado à conclusão pela impossibilidade de se tributar a integralidade da taxa Selic pelo IR e CSLL.
Entretanto, alternativamente à impossibilidade da tributação da integralidade da taxa Selic, entende-se que também seria legítimo assegurar aos contribuintes ao menos o direito de deduzir da taxa Selic incidente sobre os depósitos e indébitos tributários a correção monetária acumulada no mesmo período em que os acréscimos foram creditados.
A correção do período, por sua vez, deveria ser apurada com base nos índices oficiais de inflação, dos quais o IPCA, apurado e divulgado periodicamente pelo IBGE, é exemplo de maior destaque, inclusive por sua ampla aceitação pelos tribunais pátrios.
4) A oportunidade de o STF, no julgamento do Tema 962/RG (RE 1.063.187/SC), revisitar a questão
Por fim, sabe-se que a temática em voga foi apreciada pelo STJ em sede de recursos repetitivos, ainda que sob ótica e argumentos diversos. No julgamento do REsp 1.138.695/SC, a 1ª Seção do STJ, reformando acórdão do TRF-4, entendeu pela legitimidade da incidência do IRPJ e CSLL sobre os juros incidentes sobre depósitos levantados pelo contribuinte (Tema 504/STJ) e sobre a repetição do indébito tributário (Tema 505/STJ).
O STJ convalidou a tributação dos juros (lato sensu) incidentes sobre depósitos judiciais por considerar que estes possuem natureza remuneratória. Nessa ocasião, acaba afirmando, em obiter dictum, que a correção monetária não escaparia à tributação pelo IRPJ e pela CSLL, já que comporia “a esfera de disponibilidade patrimonial do contribuinte”.
Já em relação aos juros em repetição do indébito, apesar de reconhecer que teriam caráter moratório, afirma que sua natureza seria de lucros cessantes, a consubstanciar “evidente acréscimo patrimonial previsto no art. 43, II, do CTN (acréscimo patrimonial a título de proventos de qualquer natureza)”.
Percebe-se, entretanto, que argumentos autônomos e muito importantes não foram apreciados por ocasião daquele julgamento. Entre eles: 1) a natureza dual da taxa Selic, a englobar juros e correção monetária; 2) a impossibilidade de se tributar a mera correção monetária, posto não se tratar de receita nova, mas apenas recomposição da moeda frente aos efeitos deletérios do tempo; 3) a legitimidade de se deduzir dos valores calculados pela taxa Selic, a inflação acumulada do período.
Tais argumentos demonstram que não se pode falar em pacificação da jurisprudência pelo STJ. Até porque, atualmente, o processo repetitivo está sobrestado, em virtude da existência do Tema 962 de repercussão geral.
Referido Tema 962-RG será apreciado pelo STF no bojo do RE 1.063.187/SC, sob relatoria do ministro Dias Toffoli, sendo descrito nos seguintes termos: “Tema 962 — Incidência do Imposto de renda — Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre a taxa Selic (juros de mora e correção monetária) recebida pelo contribuinte na repetição do indébito”.
Veja que, no leading case do STF, já será analisada a incidência do IRPJ e da CSLL sobre a taxa Selic, a qual, por sua vez, é subdividida em “juros de mora e correção monetária”, sendo tais constatações indícios de que poderá a Suprema Corte aprofundar na análise da temática presentemente esmiuçada, inclusive à luz dos argumentos ora trazidos, aperfeiçoando o julgamento do tema promovido pela 1ª Seção do STJ ainda em 2013.
Espera-se que, ao assim proceder, possa o STF superar a conclusão que prevaleceu há sete anos no STJ, declarando-se a intributabilidade da taxa Selic sobre depósitos e indébitos tributários. Não sendo essa a conclusão, possa ao menos reconhecer a dedutibilidade da correção monetária acumulada (calculada pelo IPCA), do montante apurado pela taxa Selic.
[1] Em âmbito federal, a incidência da taxa Selic sobre o montante tributário depositado está prevista na Lei nº 9.703/98 e no artigo 2º, I, do Decreto nº 2.850/98, que a regulamenta.
[2] O índice de correção, no caso da repetição de indébito, deve ser o mesmo previsto às hipóteses de tributo recolhido a destempo. A partir da adoção da taxa Selic pela União para atualização do crédito tributário (é ver artigo 39, §4º da Lei nº 9.250/95; artigo 35 da Lei nº 8.212/91 c/c artigo 61, §3º da Lei nº 9.430/96), este índice passou a funcionar como paradigma aos demais entes federados, de forma que, além dos federais, também tributos estaduais, municipais e mesmo do Distrito Federal, costumam ser atualizados pela Selic.
[3] STJ, REsp 1102552/CE, rel. min. Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, jul. 25/3/2009, DJe 6/4/2009 – Tema 99/STJ.
[4] STJ, REsp 1136733/PR, rel. ministro Luiz Fux, Primeira Seção, jul. 13/10/2010, DJe 26/10/2010 – Tema 359/STJ.
[5] Súmula 523, 1ª Seção, jul. 22/4/2015, DJe 27/4/2015.
[6] SILVA, De Plácido e.Vocabulário Jurídico. Atua. Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. 26.ed. Rio de Janeiro: 2005, p. 807.
[7] STF, RE 90255, rel. min. Cordeiro Guerra, 2ª Turma, jul. 22/4/1980, DJ: 23.05.1980.