Publicações

Notícias

Sacha Calmon dá entrevista ao ConJur sobre os 40 anos do CTN

29 de outubro de 2006

A edição de hoje da revista eletrônica Consultor Jurídico publica enrevista com o Prof. Sacha Calmon Navarro Coêlho sobre os 40 anos do Código Tributário Nacional.  

Filhote da ditadura

Código Tributário Nacional beneficiou demais o Estado

por Maurício Cardoso e Aline Pinheiro

O contribuinte tem de decifrar a legislação — que de simples não tem nada —, desvendar o que e quanto tem de pagar, preencher a guia e mandar o pagamento para a Fazenda. Além de fazer todo o serviço para o fisco, ainda paga, e caro, por qualquer erro que cometa, ainda que involuntariamente. Para um dos grandes nomes do Direito Tributário, o advogado Sacha Calmon Navarro Coelho, um dos autores mais citados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, o retrato do sistema tributário brasileiro tem um nome: comodidade. Não do contribuinte, mas da Receita.

Esse sistema é uma herança da ditadura militar. O Código Tributário Nacional, que completou 40 anos na quarta-feira (25/10), foi escrito e aprovado durante o período mais autoritário do país. Esse autoritarismo influenciou diretamente a legislação. “Os autores do código devotaram erradamente um grande respeito ao Estado”, diz Sacha Calmon.

Não é difícil entender porque hoje contribuinte e fisco se enxergam como inimigos. “É realmente uma guerra”, admite o advogado. E, como em qualquer outro cabo de guerra, a corda pende para o lado mais fraco. As multas são severas. Na tentativa de evitá-las, as empresas têm de gastar alto com especialistas contratados para desvendar os mistérios da lei. “Hoje, as empresas gastam 12% de seu orçamento com departamentos fiscais, enquanto o fisco fica no bem bom.”

Para o advogado, a reforma tributária ideal deveria observar essa relação de inimizade. Quarenta anos depois, também está na hora de o código ser reescrito. Alguns trechos não são claros, outros necessitam de modernização. A lei nacional também deveria ser definitiva, e não necessitar de regulamentação de leis ordinárias. “A reverência exagerada às legislações ordinárias federais, estaduais e municipais tornou, em grande parte, letra morta a aplicação nacional do CTN.”

A parte todos os percalços, Sacha Calmon ainda acredita que há motivos para comemorar o aniversário do código. Ele veio para unificar as normas tributárias no país e nunca sofreu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. Pelo menos era bem feito.

Leia a entrevista que o advogado Sacha Calmon concedeu à revista Consultor Jurídico.

ConJur — O Código Tributário Nacional completou 40 anos na semana passada. Há motivos para comemorar?

Sacha Calmon — Acho que sim. Um amigo meu, o advogado Condorcet Rezende, pai do treinador da seleção masculina de vôlei [Bernardinho Rezende], dizia que o Código Tributário Nacional era o único diploma jurídico que jamais enfrentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. O grande valor do CTN é que ele unificou as normas gerais do Direito Tributário.

ConJur — Antes do código, o que regia as operações tributárias no Brasil?

Sacha Calmon — Era uma verdadeira balbúrdia. Existia o Código Geral de Contabilidade, que supria precariamente a falta da legislação tributária. Aplicávamos também o direito tributário estrangeiro.

ConJur — O CNT veio, então, para colocar ordem nas questões tributárias do país?

Sacha Calmon — Sim. Hoje, a obrigação tributária tem a mesma definição no Brasil inteiro. Todos sabem que o prazo de prescrição da obrigação é de cinco anos, a decadência também é de cinco, a substituição tributária deve obedecer a determinados pressupostos, a sujeição passiva direta e indireta tem as suas características. Enfim, essa foi a grande valia do Código Tributário Nacional: unificar as regras tributárias em todo o país.

ConJur — Como foi o nascimento do código?

Sacha Calmon —Surgiu de uma maneira muita rápida. Depois do golpe de 1964, já começou a se pensar em fazer uma legislação tributária. Nessa época, foi aprovada uma emenda à Constituição de 1946, vigente à época, instituindo um novo sistema tributário nacional. Entre a emenda e a Constituição de 1967, outorgada pelos militares, veio o Código Tributário Nacional.

ConJur — A legislação tributária surgiu num período de autoritarismo do governo. Quais os efeitos disso na lei?

Sacha Calmon — O grande defeito é que, sendo a obra de um período autoritário, os seus autores devotaram erradamente um grande respeito ao Estado. O Estado lato sensu, o poder arrecadador, foi muito beneficiado pelo código. No Direito Tributário, a imputação em pagamento é feita pelo credor, e não pelo devedor. Ou seja, o contribuinte não escolhe qual débito ele está pagando. Em 1973, um amigo meu esqueceu de pagar o Imposto de Renda. Em 1975, ele pagou o imposto normalmente. Mas a Fazenda usou esse dinheiro para pagar parte do que ele devia de 1973, pois a multa tinha aumentado o valor, e ele foi autuado, então, por não pagar tudo que devia de 1973 e por não pagar o imposto de 1975.

ConJur — Vários dispositivos do código precisam de regulamentação de leis ordinárias. Como o senhor avalia isso?

Sacha Calmon — Essa reverência exagerada às legislações ordinárias federais, estaduais e municipais tornou, em grande parte, letra morta a aplicação nacional do CTN. O código deveria ser peremptório. Do jeito que é, dá margem à omissão legislativa e à super-afetação de exigências. Quem sai prejudicado é o contribuinte. Em determinada cidade, o contribuinte não pode compensar crédito porque a matéria não foi regulamentada pela prefeitura. Em outro lugar, tem de obedecer a uma série de exigências para compensar o débito, todas criadas pela lei local. Ou seja, um instituto que deveria ser simples, objetivo e justo, não é.

ConJur — A substituição tributária, que está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal, está mal colocada pelo CTN?

Sacha Calmon — Sem dúvida. A redação está mal feita. Também está mal escrita na Constituição, mas o código pode esclarecer porque é uma lei complementar à Constituição. O ministro Cezar Peluso, em um voto fantástico, está revendo a jurisprudência colocada pelo ministro Nelson Jobim, já aposentado. Jobim entendia que o valor presumido da mercadoria era definitivo. Ou seja, não poderia existir restituição do ICMS se a mercadoria fosse vendida por valor inferior ao presumido.

ConJur — Em 2005, foi publicada a Lei Complementar 118, que alterou dispositivos do CTN. Essa lei corrigiu alguns desses defeitos?

Sacha Calmon — Lei interpretativa em matéria tributária é uma excrescência. O Superior Tribunal de Justiça já tinha jurisprudência consolidada sobre alguns assuntos e veio a lei para reinterpretá-los, usurpando competência do Poder Judiciário. Lei interpretativa só serve para lei nova, que ninguém entende, e não para interpretar lei velha que já tem 10 anos de jurisprudência pacificada. O Código diz que a lei interpretativa pode retroagir. Mas, para mim, essa lei não é interpretativa.

ConJur — Pelo CTN, o próprio contribuinte é quem tem de saber o que deve e pagar para o fisco. É um bom sistema?

Sacha Calmon — O contribuinte tem de interpretar a legislação confusa e contraditória, tem de ter um especialista para entender o que tem de pagar. Ele mesmo prepara a guia de pagamento, informa o fisco, leva ao banco e paga. Além disso, se o contribuinte for autuado, o pagamento não tem efeito liberatório imediato. Durante cinco anos, a Fazenda Pública pode fazer quantas fiscalizações quiser na empresa, para ver se os impostos estão sendo pagos como devem. O contribuinte fica, durante cinco anos, com a Espada de Dâmocles sobre a cabeça. Isso se chama: comodidade da Fazenda Pública. Ela obriga o contribuinte a interpretar e entender a lei, pagar e ainda tem de ficar cinco anos de braços amarrados. Por outro lado, a homologação não ser expressa é bom porque evita a corrupção e permite que as autoridades fiscais fiscalizem por um período mais longo os maus contribuintes. Mas não deixa de ser um martírio para o bom contribuinte.

Conjur — O código deveria diferenciar o tratamento dado ao bom e ao mau contribuinte?

Sacha Calmon — Sim. As colocações do código para o contribuinte que age de boa fé são muito perversas. A fiscalização teria de cobrar o tributo com correção e juros, mas sem multa, se o contribuinte errou apenas na interpretação da lei. Afinal de contas, quem deveria cobrar o tributo é o fisco. Mas, no Direito Tributário como é hoje, a intenção do agente não interessa. Tanto faz se ele agiu de boa ou má fé. Todos são igualados de maneira desigual. Isso fere a isonomia e o senso de justiça.

ConJur — Mas como poderia ser feita essa diferenciação?

Sacha Calmon — De várias maneiras. Vou contar, como exemplo, uma história que aconteceu aqui em São Paulo. O office boy foi pagar o imposto para a empresa no último dia. No caminho, foi atropelado. Um fiscal que viu o atropelamento, ficou sabendo o que o boy iria fazer e não fez. No dia seguinte, o fiscal da Fazenda estava lá na empresa, pedindo o comprovante do pagamento. O empresário explicou o que aconteceu, mostrou até o recibo de que tinha retirado o dinheiro no banco, o atestado do office boy atendido no posto de saúde. Mesmo assim, o fiscal manteve: “Não me interessa. A lei diz que a infração independe da intenção do agente”. Existem multas de até 100% do valor do tributo devido. Isso é confiscatório. Por isso que eu digo: o capítulo das penalidades, por aplicar multas excessivas, por não distinguir se uma pessoa é primária ou reincidente, por não levar em conta a intenção do agente, precisa ser reescrito.

ConJur — O contribuinte e o fisco se enxergam como inimigos?

Sacha Calmon — É realmente uma guerra. Os órgãos fiscais olham o contribuinte como adversário, alguém que tem de ser destruído. Na verdade, destruir o contribuinte significa destruir a galinha dos ovos de ouro. Na França, por exemplo, essa visão já está sendo revista. O contribuinte francês já é tratado como cliente da instituição fiscal, e não como inimigo. É assim que tem de ser. A tributação tem de ser simplificada e o contribuinte tem de ser bem tratado para diminuir o custo Brasil. Hoje, as empresas gastam 12% de seu orçamento com departamentos fiscais, enquanto o fisco fica no bem bom. Os romanos já diziam: “onde há o cômodo, há o incômodo”.

ConJur — Podemos falar de reforma tributária sem falar de reforma no código tributário?

Sacha Calmon — Não há reforma tributária sem reforma no código. Aliás, o que chamam hoje de reforma tributária é apenas a unificação do ICMS, que jamais poderia ser um imposto estadual. O Brasil é o único país no mundo em que o imposto sobre o valor adicionado pertence aos estados. Aqui, o ICMS é um único imposto, partilhado por estados que o esculhambaram totalmente. Utilizaram-no como instrumento para o crescimento. A reforma tributária ideal tem de levar em conta a pressão dos juros, a dívida pública, a desigualdade dos contribuintes, a escolha de uma tributação adequada para estimular a produtividade e evitar a evasão.

ConJur — Essa reforma é possível?

Sacha Calmon — Possível é. Resta saber se há vontade política para fazê-la.

ConJur — E há?

Sacha Calmon — Eu acho que não. E como ela tem no foco a questão do ICMS, então os estados não se entendem. Esse é o grande complicador. Eu vejo com muito ceticismo uma reforma tributária.

ConJur — Há a necessidade de todo o código ser reescrito?

Sacha Calmon — Sim. Eu já tenho um novo projeto de código, escrito durante quatro turmas de pós-graduandos. Já ofereci o texto para a Federação da Indústria do Rio de Janeiro e para a OAB de São Paulo. O nosso código também precisa ser modernizado, incorporar conceitos para aperfeiçoar a incidência dos tributos e das relações.

ConJur — O Brasil tem tributos de mais ou de menos?

Sacha Calmon — A quantidade de tributos previstos na Constituição é razoável. O abuso está na proliferação das contribuições e as alíquotas. O Brasil arrecada 40% do seu PIB. Isso não é reflexo de um excesso de imposto, mas da multiplicação das contribuições: 51% do dinheiro arrecadado vêm de contribuições.

ConJur — No Brasil, a informalidade é causa ou conseqüência?

Sacha Calmon — É evidente que é conseqüência e não a causa. A causa é o excesso não apenas de tributos, como de encargos sociais e trabalhistas. Principalmente trabalhistas. Por isso que o país não cresce: juros altos e excesso tributário.

ConJur — O que poderia ser feito para reduzir a informalidade?

Sacha Calmon — A lei do Simples poderia ser expandida para as médias empresas. Segundo o Jorge Rachid [secretário da Receita Federal], cerca de 900 empresas são responsáveis por 85% da arrecadação federal. Lucro presumido tinha de valer para quase todo mundo. Ninguém sonega quando a carga tributária é razoável. É uma burrice aumentar tributo, porque isso só aumenta o mercado informal. Hoje, no mínimo 30% das empresas estão na informalidade e mais de 51% da força de trabalho estão na informalidade, por força dessa pressão fiscal. A tributação é parte integrante da macroeconomia. Não se pode ter uma visão particularizada do tributo como se ele fosse algo à parte.

Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2006

Compartilhar